A Crise de Quem Eu Sou

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Tudo parece no lugar: rotina, metas, aparência, rede social. Mas algo escapa. Uma sensação de desajuste interno, como se faltasse um eixo.

Essa fricção silenciosa tem nome. Ela aparece cada vez mais entre jovens adultos e carrega um peso clínico real: autoimagem instável, self incoerente, leve dissociação.

Nietzsche já anunciava esse colapso simbólico no século XIX, quando afirmou que “Deus está morto” — não como ateísmo, mas como alerta existencial: os grandes sentidos que antes organizavam a vida foram esvaziados. Hoje, a hiperexposição digital amplifica esse vazio: há estímulo demais, mas referência de menos.

📹 Neste vídeo, trago exatamente esse ponto: como a perda de sentido nietzschiana se manifesta hoje — e por que isso exige um resgate simbólico real:

🔗 Assista: Nietzsche, colapso simbólico e o self contemporâneo

 

1. Introdução

A hiperexposição digital, intensificada pelo uso recorrente de redes sociais e dispositivos de comunicação constante, tornou-se um dos marcos estruturais da vida contemporânea — especialmente entre jovens adultos. Este novo cenário facilita a manipulação simbólica da identidade, promovendo instabilidade narrativa e tensão interna constante. Neste contexto, este artigo busca compreender como a formação do self é afetada quando a autoimagem se torna continuamente comparada, editada e idealizada, abrindo espaço para o surgimento de estados de ansiedade e insegurança identitária (Ramos & Hamdan, 2016).

💡 Quer entender por que isso está sendo chamado de “Era Borderline Cultural”?

Em uma entrevista internacional, exploro como a crise simbólica do self — vivida por jovens hiperexpostos — marca uma transição do sucesso material para a busca urgente por significado.

🔗 Leia a entrevista na IssueWire

2. Fragmentação Identitária e Hiperexposição Digital

A “liquidez” das identidades modernas força os indivíduos a uma adaptação constante diante de expectativas voláteis e códigos simbólicos que mudam rapidamente. No ambiente digital, essa pressão é amplificada: o self se distribui por múltiplas plataformas, moldado por narrativas fragmentadas e curadorias artificiais da própria imagem. Essa cisão – longe de ser – apenas – “estética” — tem implicações psicológicas concretas, promovendo transtornos de ansiedade, sentimentos de inadequação e estados depressivos que emergem da constante busca por validação externa.

3. Paradigmas Teóricos da Psicologia do Self

A psicologia do self, com base nos referenciais de William James, Carl Rogers e Heinz Kohut, oferece um enquadramento conceitual válido para compreender essa fragmentação. James propõe a clássica distinção entre o I (eu que experimenta) e o Me (eu que é percebido), uma dualidade que, em um contexto digital, tende ao descolamento — o Me digitalizado frequentemente se sobrepõe ao I vivido.

Carl Rogers, por sua vez, enfatiza a congruência entre o self ideal e o self real como essencial para a saúde psicológica. A distância crescente entre essas instâncias subjetivas, causada por padrões inatingíveis de performance digital, acentua conflitos internos, gerando dissonância cognitiva e emocional.

Heinz Kohut aprofunda essa discussão ao centrar-se na empatia como elemento central para a coesão do self. Entretanto, no ecossistema digital, as interações tendem a ser rasas e despersonalizadas — reduzindo oportunidades de experiências empáticas genuínas e comprometendo a construção de um self integrado (Lima & Riechi, 2017).

4. Fenomenologia Contemporânea e Identidade Subjetiva

A fenomenologia contemporânea, especialmente pelas contribuições de Merleau-Ponty e Shaun Gallagher, amplia a discussão ao inserir a corporeidade e a experiência vivida no centro da construção identitária. Merleau-Ponty destaca o corpo como fundamento da percepção e do self — porém, na hiperexposição digital, o corpo é frequentemente abstraído, substituído por avatares simbólicos e imagens manipuladas. Essa dissociação entre corpo vivido e corpo representado contribui para a sensação de alienação e descontinuidade do eu (Santos et al., 2017).

Gallagher introduz a noção de self encarnado, argumentando que identidade pessoal emerge da interação social situada e da percepção corporal no tempo presente. No entanto, o ambiente digital compromete essas bases ao reduzir a espontaneidade e encurtar o ciclo de feedback empático, promovendo uma autoimagem artificial e, muitas vezes, desregulada.

5. Efeitos Clínicos e Propostas de Intervenção

Diante desses elementos, torna-se urgente elaborar estratégias clínicas adaptadas às exigências simbólicas da contemporaneidade. Propõe-se aqui uma abordagem que combine investigações qualitativas com ferramentas quantitativas, como, por exemplo, a Self-Concept Clarity Scale, para mensurar a coesão identitária em jovens adultos. A Self-Concept Clarity Scale (SCCS) é uma escala psicométrica validada que mede o grau de clareza, consistência e estabilidade da autoimagem de um indivíduo ao longo do tempo.

Com base no que foi exposto, a intervenção clínica pode incluir:

  • Recuperação narrativa: Técnicas de reconstrução do discurso autobiográfico, ajudando o sujeito a integrar experiências fragmentadas e a recuperar continuidade simbólica.

  • Treinamento emocional e regulação simbólica: Intervenções que fortaleçam a consciência emocional e a capacidade de sustentar o self sob tensão social e comparações.

  • Práticas de mindfulness e autorreflexão corporal: Estratégias de reancoragem no presente, promovendo consistência perceptiva e integração entre vivência interna e representação externa.

Essas estratégias devem ser ajustadas à clínica contemporânea, que exige ferramentas flexíveis, dialógicas e enraizadas na complexidade simbólica do eu em crise.

6. Conclusão

Pesquisas da OMS já apontam: a psicologia se tornou linha de frente da saúde no século XXI. O que colapsa hoje não é o corpo — é o sentido. A medicina estabiliza o organismo, mas a psicologia reposiciona o sujeito. A clínica contemporânea lida com quedas de direção, não com falhas biológicas. Em vez de dor localizada, surge o vazio existencial. Em vez de crise funcional, a desorientação interna. A escuta deixou de ser coadjuvante. Hoje, ela é intervenção direta: alinha a percepção, recompõe a trajetória e devolve o eixo. A nova saúde nasce onde a narrativa se recompõe. Não falta serotonina. Falta lugar. Falta sentido. Não é apenas sobre serotonina. É sobre encontrar lugar. É sobre reconquistar o sentido.

🔎 Sobre o trabalho clínico de Felipe Pretel

Psicólogo pela UNIFESP, com formação clínica continuada pelo Instituto de Psicologia da USP e pela Clínica Singularis, Pretel atua a partir de uma abordagem psicodinâmica contemporânea, com foco em conflitos afetivos, estruturas de personalidade e simbolização das experiências.

Também formado em Economia pela FEA-USP, desenvolve uma escuta ampliada das dimensões estruturais da vida humana — como valor, trabalho, posição e contingência — integrando leitura sociocultural com técnica clínica refinada.

As entrevistas abaixo oferecem um ponto de entrada simbólico para compreender sua forma de pensar, trabalhar e interpretar os dilemas existenciais da nossa época — revelando tanto o estilo clínico quanto a densidade subjetiva do autor:

Clínica fundamentada, simbolização profunda e escuta atravessada por conflitos reais, relações vividas e posicionamentos subjetivos.

 

 

FELIPE PRETEL ANTUNES VIEIR

📚 Referências (Formato APA 7ª edição)

Brown, K. W., & Ryan, R. M. (2003). The benefits of being present: Mindfulness and its role in psychological well-being. Journal of Personality and Social Psychology, 84(4), 822–848. https://doi.org/10.1037/0022-3514.84.4.822

Campbell, C. E., & Miller, R. J. (2005). Self-concept clarity and emotional well-being. Psychological Reports, 96(3), 659–664. https://doi.org/10.2466/pr0.96.3.659-664

Gallagher, S. (2005). How the body shapes the mind. Oxford: Clarendon Press.

Giddens, A. (1991). Modernity and self-identity: Self and society in the late modern age. Stanford University Press.

Hayes, S. C., & Feldman, G. (2004). Accepting the present: Mindfulness, acceptance, and commitment therapy. Journal of Behavioral Medicine, 27(6), 499–505. https://doi.org/10.1007/s10865-004-8005-4

James, W. (1890). The principles of psychology (Vol. 1). New York: Holt.

Kohut, H. (1971). The analysis of the self: A systematic approach to the psychoanalytic treatment of narcissistic personality disorders. New York: International Universities Press.

McAdams, D. P. (1990). Unity and purpose in human lives: The emerging field of life story psychology. Journal of Personality, 58(1), 17–200. https://doi.org/10.1111/j.1467-6494.1990.tb00954.x

Merleau-Ponty, M. (1962). Phenomenology of perception (C. Smith, Trans.). London: Routledge.

Rogers, C. R. (1961). On becoming a person: A therapist’s view of psychotherapy. Boston: Houghton Mifflin.

Turkle, S. (2011). Alone together: Why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books.

Varela, T. (2021). Digital age: Identity crisis or evolution? Journal of Modern Psychology, 43(2), 85–102.

 

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Sobre o Felipe

Felipe Pretel, USP

Psicólogo Clínico com foco em Saúde Mental baseada em Evidências

Psicólogo Clínico formado pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP e Economista formado pela Universidade de São Paulo – FEA-USP. Atua no tratamento de ansiedade, transtornos emocionais e dificuldades interpessoais, utilizando abordagens científicas para promover bem-estar psicológico. Com experiência acadêmica e profissional internacional, aplica neurociência e psicologia baseada em evidências para auxiliar no desenvolvimento emocional e no fortalecimento da saúde mental. Realiza atendimentos em português, inglês e espanhol.

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