POR: FELIPE PRETEL ANTUNES VIEIRA
Explorando Jacques Lacan: Guia Clínico para Psicólogos e Pacientes!
Jacques Lacan (1901–1981) continua sendo uma das figuras mais influentes, originais e provocativas da psicanálise moderna. Muitas vezes descrito como um “freudiano heterodoxo”, Lacan não apenas reinterpretou Freud — ele o revitalizou, devolvendo à psicanálise seu poder de interrogar radicalmente o sujeito humano. Suas teorias desafiam os conceitos psicanalíticos tradicionais, propondo que a formação do psiquismo humano está profundamente entrelaçada com a linguagem, o desejo e as estruturas sociais. Nesta síntese voltada a psicólogos, exploramos os princípios centrais de Lacan, suas implicações terapêuticas e seus afastamentos — ou melhor, suas expansões — em relação à psicanálise freudiana clássica.
Origens e Conceitos Fundamentais
A trajetória de Lacan se conecta diretamente com sua releitura crítica e profunda da obra de Freud. Ele foi um grande opositor do movimento psicanalítico do pós-guerra na França, que, segundo ele, caminhava para uma “psicologia do ego” — um foco na resiliência egóica em vez do inconsciente. Sua crítica mirava o quanto essa abordagem deixava escapar a complexidade do desejo e da subjetividade (Krüger, 2012).
Lacan propôs que o inconsciente é “estruturado como uma linguagem”, uma das formulações mais poderosas da psicanálise do século XX. Essa frase, longe de ser mero aforismo, aponta que a linguagem constitui o alicerce dos desejos e da realidade subjetiva (Schwartz, 2009).
Um dos pilares de sua teoria é o Estádio do Espelho, que afirma que a identificação da criança com sua imagem no espelho funda o “eu” — inaugurando uma busca interminável por uma identidade que, por definição, é sempre deslocada. Essa fase evidencia que a construção da identidade não é interna, mas mediada por imagens externas, expectativas sociais e estruturas linguísticas (Billig, 2006).
A partir dessas bases, Lacan desenvolveu sua famosa divisão do psiquismo humano em três registros:
- O Imaginário: ligado às imagens e ilusões — base das identificações narcísicas e dos equívocos do “eu”.
- O Simbólico: diz respeito à linguagem, à lei e às normas sociais — estrutura o desejo humano.
- O Real: aquilo que escapa à linguagem, o impossível de ser simbolizado (Parker, 2003).
Essa tripartição não é apenas teórica — é uma bússola clínica poderosa.
Aplicações Clínicas
Lacan propõe que o terapeuta escute a linguagem do sujeito sem pressupostos do que seria um “psiquismo saudável”. Isso faz com que a escuta lacaniana foque no desejo que se expressa nos sintomas — e não na simples redução de sintomas, como ocorre em abordagens como a TCC (Tudor, 2019).
Sua visão sobre a psicose também rompe com a tradição freudiana. Enquanto Freud considerava os psicóticos “inaptos” à análise, Lacan via na estrutura psicótica um acesso direto ao funcionamento do inconsciente — o que, por contraste, podia iluminar a neurose (Schwartz, 2009). Isso levou à formulação de técnicas clínicas específicas para psicóticos, centradas na linguagem e nos modos de estruturação do discurso.
Comparação com TCC e Psicanálise Tradicional
Enquanto a TCC prioriza o raciocínio lógico e a gestão de sintomas, Lacan aposta no mergulho nas zonas de sombra do sujeito, onde habita o desejo (Parker, 2010). Já a psicanálise freudiana tradicional busca resolver conflitos inconscientes por meio da associação livre. Lacan inverte isso: o inconsciente se manifesta na fala do sujeito — por isso, a clínica deve se orientar pela escuta do modo como ele articula sua experiência (Vanheule, 2013).
Esse modelo pode levar a processos mais longos, mas também a compreensões mais profundas e transformadoras do “eu”.
Popularidade Crescente da Psicanálise Lacaniana
Nos últimos anos, a abordagem lacaniana tem conquistado espaço como alternativa sofisticada e ética aos modelos terapêuticos convencionais. Muitos clínicos percebem que os tratamentos centrados em sintomas deixam lacunas ao abordar o sofrimento humano. Reaproximar-se de Lacan é, para muitos, uma tentativa de retomar o contato com o desejo do paciente — aquilo que verdadeiramente movimenta sua existência. Suas ideias também ecoam fora do consultório — em estudos culturais, teorias feministas e críticas ao capitalismo (Parker, 2005; Contu et al., 2010).
Críticas e Evidências Científicas
Apesar de sua crescente influência, Lacan enfrenta críticas por sua baixa validação empírica em comparação com modelos como a TCC, que contam com forte respaldo estatístico (Faradilla, 2023).
Além disso, seus conceitos — densos e muitas vezes abstratos — podem dificultar o acesso prático de muitos profissionais. No entanto, frequentemente os analistas lacanianos tem um preparo excelente e muito a acima da média dos psicólogos.
Há também a crítica de que sua teoria, em alguns momentos, se distancia da clínica concreta, tornando-se excessivamente enigmática e de difícil aplicação (Pavón‐Cuéllar, 2013; Bahmanteymouri, 2020). Em resposta, psicanalistas lacanianos contemporâneos têm defendido a necessidade de formação contínua e de atualização das técnicas à realidade atual (Dulsster et al., 2021). O próprio Lacan, aliás, sempre insistiu na necessidade de repensar a prática analítica — o que mostra a vitalidade de sua obra.
Formação e Certificação
Para atuar com a psicanálise lacaniana, o profissional precisa de formação teórica aprofundada, acompanhada de supervisão clínica rigorosa. Instituições como a École de la Cause Freudienne e a World Association of Psychoanalysis oferecem formações específicas voltadas à prática clínica (Neill, 2013). O processo é exigente — e justamente por isso, formador de clínicos mais conscientes da complexidade do desejo humano.
Portanto…
A psicanálise lacaniana oferece um olhar rigoroso, radical e profundamente humanista sobre o funcionamento psíquico, colocando a linguagem, o desejo e a cultura no centro da escuta clínica. Para psicólogos, mergulhar nessa abordagem significa ampliar a escuta, reconhecer as camadas simbólicas da identidade e compreender como o sujeito se constitui na relação com o Outro.
Num cenário terapêutico cada vez mais protocolar e sintomático, Lacan ainda provoca: será que escutamos o desejo do sujeito — ou apenas silenciamos seus sintomas?
Esse panorama oferece uma base essencial para compreender as contribuições de Lacan à psicologia clínica, incentivando uma prática mais reflexiva, simbólica e comprometida com a complexidade do humano. E, acima de tudo, reafirma o valor de uma escuta que não se contenta com o óbvio — mas vai, como Lacan, direto ao ponto que não se diz, mas insiste.
🔎 Sobre o trabalho clínico de Felipe Pretel
Psicólogo pela UNIFESP, com formação clínica continuada pelo Instituto de Psicologia da USP e pela Clínica Singularis, Felipe atua a partir de uma abordagem psicodinâmica contemporânea, com foco em conflitos afetivos, estruturas de personalidade e simbolização das experiências.
Também formado em Economia pela FEA-USP, desenvolve uma escuta ampliada das dimensões estruturais da vida humana — como valor, trabalho, posição e contingência — integrando leitura sociocultural com técnica clínica refinada.
As entrevistas abaixo oferecem um ponto de entrada simbólico para compreender sua forma de pensar, trabalhar e interpretar os dilemas existenciais da nossa época — revelando tanto o estilo clínico quanto a densidade subjetiva do autor:
- 📄 Entrevista Internacional (IssueWire)
- 📄 Nova Entrevista Internacional (ISStories)
- 📲 Instagram Profissional: @ifpretel
- 💼 LinkedIn Profissional
Clínica fundamentada, simbolização profunda e escuta atravessada por conflitos reais, relações vividas e posicionamentos subjetivos.
Referências
BAHMANTEYMOURI, E. A lacanian understanding of urban development plans under the neoliberal discourse. Planning Theory, v. 20, n. 3, p. 231–254, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1473095220981118.
BILLIG, M. Lacan’s misuse of psychology. Theory, Culture & Society, v. 23, n. 4, p. 1–26, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406066367.
CONTU, A.; DRIVER, M.; JONES, C. Editorial: Jacques Lacan with organization studies. Organization, v. 17, n. 3, p. 307–315, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1350508410364095.
DULSSTER, D. et al. Lacanian discourse theory and the process of change in Lacanian-oriented talking therapies. Psychoanalytic Psychology, v. 38, n. 4, p. 319–327, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1037/pap0000335.
FARADILLA, D. Character resistance as a compliance of homosexual desires in Elisa y Marcela movie by Isabel Coixet: a Slavoj Žižek’s psychoanalysis-historical approach. Leksika: Jurnal Bahasa Sastra Dan Pengajarannya, v. 17, n. 2, p. 127, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.30595/lks.v17i2.17037.
KRÜGER, S. Fresh brains: Jacques Lacan’s critique of Ernst Kris’s psychoanalytic method in the context of Kris’s theoretical writings. American Imago, v. 69, n. 4, p. 507–542, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1353/aim.2012.0023.
NEILL, C. Breaking the text: an introduction to Lacanian discourse analysis. Theory & Psychology, v. 23, n. 3, p. 334–350, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0959354312473520.
PARKER, I. Jacques Lacan, barred psychologist. Theory & Psychology, v. 13, n. 1, p. 95–115, 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0959354303013001764.
PARKER, I. Lacanian discourse analysis in psychology. Theory & Psychology, v. 15, n. 2, p. 163–182, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0959354305051361.
PARKER, I. The place of transference in psychosocial research. Journal of Theoretical and Philosophical Psychology, v. 30, n. 1, p. 17–31, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1037/a0019104.
PAVÓN‐CUÉLLAR, D. Lacan and social psychology. Social and Personality Psychology Compass, v. 7, n. 5, p. 261–274, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1111/spc3.12025.
SCHWARTZ, S. A psychosis more ordinary: a Lacanian treatment of paranoia. British Journal of Psychotherapy, v. 25, n. 3, p. 298–311, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1752-0118.2009.01124.x.
TUDOR, K. Editorial. Psychotherapy and Politics International, v. 17, n. 2, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1002/ppi.1499.
VANHEULE, S. The psy-complex revisited: Lacanian psychoanalysis and critical theory. Theory & Psychology, v. 23, n. 5, p. 695–697, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0959354313483681.