Psicologia da Violência Oculta: Como Abusadores Mantêm Fachadas e Afetam Vidas

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POR: FELIPE PRETEL ANTUNES VIEIRA

A violência doméstica continua sendo um problema crítico de saúde pública, com implicações significativas para as vítimas, famílias e comunidades. Apesar dos avanços sociais na compreensão e no enfrentamento da violência doméstica, muitos agressores mantêm fachadas socialmente respeitáveis enquanto praticam abuso em privado. Este artigo explora os mecanismos psicológicos que facilitam essa dupla existência, incluindo a dissonância cognitiva, a gestão de impressão e a blindagem de reputação baseada em status. Além disso, destaca os impactos na saúde mental das vítimas, apresenta intervenções clínicas baseadas em evidências e estratégias de prevenção e enfatiza a revelação eventual dos padrões abusivos, levando a consequências severas para os perpetradores.

Dissonância Cognitiva e Gestão de Impressão

A dissonância cognitiva desempenha um papel fundamental no comportamento dos agressores domésticos. Ela descreve o desconforto psicológico que surge quando as ações de um indivíduo contradizem suas crenças ou valores. Os agressores frequentemente racionalizam seu comportamento para aliviar esse desconforto, adotando narrativas que os retratam como justificados em suas ações (Pavlenko, 2023). Esse mecanismo psicológico permite que mantenham uma imagem pública respeitável enquanto praticam comportamentos abusivos em privado.

A gestão de impressão refere-se aos esforços estratégicos que os indivíduos fazem para influenciar como os outros os percebem. Os agressores podem cultivar uma fachada de pessoas cuidadosas ou responsáveis, manipulando com sucesso as percepções sociais para evitar escrutínio. Frequentemente, utilizam seu status social, como autoridade profissional ou envolvimento comunitário, como escudo contra acusações de abuso (Enander, 2010). Pesquisas indicam que indivíduos em posições de poder podem moldar efetivamente as percepções públicas, sustentando assim seus comportamentos abusivos com consequências mínimas (Harned, 2005).

Blindagem de Reputação Baseada em Status

O conceito psicológico de blindagem de reputação baseada em status elucida como as percepções sociais podem proteger agressores de serem responsabilizados. As vítimas podem hesitar em denunciar o abuso por medo de descrédito ou de repercussões sociais, permitindo assim a perpetuação do ciclo de violência. Por exemplo, as vítimas podem internalizar narrativas sociais que priorizam o status do agressor em detrimento de suas próprias experiências, levando a maior isolamento e vulnerabilidade (Muri et al., 2022). Essa dinâmica reforça a necessidade de maior conscientização social e mudanças estruturais que capacitem as vítimas a falar sem medo.

Violência entre Familares Próximos Pouco Visível

Um aspecto frequentemente negligenciado diz respeito à violência exercida por familiares próximos que não convivem sob o mesmo teto — como tios ou outros parentes. Por escapar do estereótipo clássico de violência conjugal ou parental, esse tipo de abuso muitas vezes permanece invisível. No entanto, pode envolver intimidação, coerção emocional, manipulação financeira ou ameaças sutis direcionadas a outros membros da família. Pesquisas sugerem que a proximidade afetiva e os laços de confiança implícitos nesses relacionamentos dificultam a identificação precoce do abuso, uma vez que as vítimas relutam em denunciar ou reconhecer comportamentos nocivos de indivíduos vistos como “figuras de apoio” (Katz et al., 2020; Muri et al., 2022). Além disso, tais agressores frequentemente utilizam a reputação familiar ou papéis tradicionais para mascarar seus comportamentos, criando um ambiente onde a violência simbólica e psicológica pode persistir por longos períodos antes de ser formalmente reconhecida. A literatura recente destaca que padrões de abuso dentro de redes familiares ampliadas estão associados a impactos significativos na saúde mental, incluindo sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e isolamento social (Claussen et al., 2022).

Impacto na Saúde Mental das Vítimas

As implicações para a saúde mental das vítimas de violência doméstica são amplas e frequentemente severas. Pesquisas mostram consistentemente que vítimas de abuso doméstico apresentam taxas elevadas de TEPT, ansiedade e depressão, sendo que o abuso psicológico está associado a desfechos tão prejudiciais quanto a violência física (Liu et al., 2010). O isolamento e a manipulação vivenciados pelas vítimas podem gerar impactos duradouros em seu bem-estar mental, incluindo diminuição da autoestima e uma percepção distorcida da realidade. Além disso, crianças expostas à violência doméstica apresentam risco significativo de desafios psicológicos tanto imediatos quanto de longo prazo (Pavlenko, 2023).

Intervenções Clínicas Baseadas em Evidências e Estratégias de Prevenção

O tratamento de vítimas de abuso doméstico exige intervenções clínicas fundamentadas em evidências e orientadas para o cuidado tanto imediato quanto duradouro. Abordagens psicoterapêuticas consolidadas como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a Terapia Psicodinâmica Estrutural e as Terapias de Terceira Onda, como a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e a Terapia Dialética Comportamental (DBT), têm demonstrado eficácia significativa nesse contexto.

A TCC atua na identificação e reestruturação de padrões disfuncionais de pensamento, fortalecendo a autorregulação emocional e a capacidade de enfrentamento (Claussen et al., 2022). Já a Terapia Psicodinâmica Estrutural permite acessar dinâmicas inconscientes ligadas à autopercepção e ao vínculo com figuras significativas, promovendo uma reconstrução do self em contextos de trauma relacional. Por sua vez, abordagens baseadas em mindfulness auxiliam na redução da reatividade emocional e na ampliação da consciência do momento presente, facilitando maior autonomia e clareza diante de experiências emocionais intensas.

Essas intervenções promovem alívio sintomático, restauram o senso de agência, fortalecem a identidade pessoal e ampliam os recursos internos das vítimas para a reconstrução de suas trajetórias.

No campo da prevenção, estratégias eficazes incluem campanhas de educação comunitária voltadas à desconstrução de mitos e normas sociais que naturalizam a violência. Programas que ensinam habilidades de relacionamento saudável, bem como iniciativas que engajam homens em diálogos sobre masculinidade, empatia e respeito, mostraram-se particularmente úteis na redução da incidência do abuso (Fitzgerald et al., 2020).

Além disso, modelos de justiça restaurativa oferecem um caminho alternativo ao sistema penal tradicional, focando na responsabilização ativa dos agressores e na reconstrução dos laços sociais, quando possível, dentro de uma lógica de reparação e não violência (Katz et al., 2020).

Abaixo, listamos 10 consequências amplamente documentadas que recaem sobre agressores domésticos — com efeitos jurídicos, sociais, emocionais e existenciais:

1. Instauração de procedimento e colheita de provas.
Relato fundamentado viabiliza registro, inquérito e medidas urgentes.
Mensagens, áudios, e-mails, diários e testemunhos formam lastro probatório mesmo após longos intervalos.
O conjunto probatório sustenta providências cautelares e persecução penal.

2. Medidas protetivas e cautelares pessoais.
Afastamento do convívio, proibição de contato por qualquer meio e restrição de aproximação podem ser deferidos de imediato.
Ordens incluem entrega de armas, monitoramento e restrições de circulação.
Descumprimento gera repercussões penais e reforço das cautelares.

3. Tentativa de reaproximação com efeito jurídico.
Contato direto, indireto ou “casual” configura violação de fronteira imposta judicialmente.
A conduta enseja notícia de descumprimento e novas medidas, inclusive detenção.
Cada abordagem adiciona elementos à reincidência e agrava o quadro.

4. Responsabilidade civil por danos.
Ação indenizatória abrange danos morais, materiais e custos de tratamento.
Bens e ativos ficam sujeitos a bloqueio, penhora e indisponibilidade.
Tutelas de urgência asseguram efetividade patrimonial da execução.

5. Repercussões profissionais e administrativas.
Códigos de conduta e compliance impedem manutenção de cargos de confiança.
Processos administrativos disciplinares resultam em suspensão, demissão ou descredenciamento. Credibilidade institucional perde validade para funções sensíveis, cargos públicos, etc.

6. Reconfiguração de convivência familiar e poder parental.
Convivência pode ser suspensa, limitada ou supervisionada.
Planos de visitas sofrem revisão com foco em proteção integral.
Decisões preservam o melhor interesse de crianças e adolescentes.

7. Publicidade social do fato e estigma jurídico-social.
Decisões, relatos e atos processuais geram repercussão comunitária.
A audiência social se forma em redes, grupos e instituições locais.
A marca reputacional compromete vínculos e oportunidades.

8. Produção probatória tardia estruturada.
Perícias psicológicas e sociais, análise de metadados e depoimentos cruzados consolidam a narrativa.
Linhas do tempo organizadas elevam a coerência do relato.
A robustez técnica reduz espaço para teses defensivas frágeis.

9. Custos processuais e financeiros acumulados.
Custas, honorários sucumbenciais e perícias impactam o patrimônio do agressor.
Acordos judiciais exigem valores expressivos e obrigações acessórias.
O passivo jurídico-financeiro mantém efeito prolongado.

10. Obrigações judiciais e desgaste psíquico-jurídico.
Comparecimento periódico em juízo, cursos de reeducação e acompanhamento psicossocial integram o pacote de medidas.
Hipervigilância diante de intimações, audiências e fiscalizações corrói a estabilidade subjetiva.
A soma de restrições legais e perda de status produz colapso relacional e identitário.

Portanto…

Desta maneira, os mecanismos que permitem que agressores domésticos mantenham fachadas respeitáveis enquanto praticam abuso são complexos e multifacetados. A dissonância cognitiva, a gestão de impressão e a proteção baseada em status combinam-se para permitir que os agressores evitem a responsabilização, frequentemente resultando em danos psicológicos significativos para suas vítimas. No entanto, pesquisas emergentes indicam consistentemente que esses padrões abusivos — apesar de sua opacidade inicial — acabam sendo revelados por mecanismos clínicos e sociais. As consequências para os perpetradores podem ser severas, abrangendo repercussões legais, danos reputacionais e perda de status relacional. Portanto, fomentar uma postura social mais informada e proativa contra a violência doméstica é fundamental tanto para os esforços de prevenção quanto de intervenção.

🔎 Sobre o trabalho clínico de Felipe Pretel

Psicólogo pela UNIFESP, com formação clínica continuada pelo Instituto de Psicologia da USP e pela Clínica Singularis, Pretel atua a partir de uma abordagem psicodinâmica contemporânea, com foco em conflitos afetivos, estruturas de personalidade e simbolização das experiências.

Também formado em Economia pela FEA-USP, desenvolve uma escuta ampliada das dimensões estruturais da vida humana — como valor, trabalho, posição e contingência — integrando leitura sociocultural com técnica clínica refinada.

As entrevistas abaixo oferecem um ponto de entrada simbólico para compreender sua forma de pensar, trabalhar e interpretar os dilemas existenciais da nossa época — revelando tanto o estilo clínico quanto a densidade subjetiva do autor:

Clínica fundamentada, simbolização profunda e escuta atravessada por conflitos reais, relações vividas e posicionamentos subjetivos.

 

FELIPE PRETEL ANTUNES VIEIR

REFERÊNCIAS

Claussen, C., Matejko, E., & Exner‐Cortens, D. (2022). Exploring risk and protective factors for adolescent dating violence across the social-ecological model: A systematic scoping review of reviews. Frontiers in Psychiatry, 13, 933433. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2022.933433

Enander, V. (2010). Leaving Jekyll and Hyde: Emotion work in the context of intimate partner violence. Feminism & Psychology, 21(1), 29–48. https://doi.org/10.1177/0959353510384831

Fitzgerald, A., Barrett, B., Gray, A., & Cheung, C. (2020). The connection between animal abuse, emotional abuse, and financial abuse in intimate relationships: Evidence from a nationally representative sample of the general public. Journal of Interpersonal Violence, 37(5–6), 2331–2353. https://doi.org/10.1177/0886260520939197

Harned, M. (2005). Understanding women’s labeling of unwanted sexual experiences with dating partners. Violence Against Women, 11(3), 374–413. https://doi.org/10.1177/1077801204272240

Katz, E., Nikupeteri, A., & Laitinen, M. (2020). When coercive control continues to harm children: Post‐separation fathering, stalking and domestic violence. Child Abuse Review, 29(4), 310–324. https://doi.org/10.1002/car.2611

Liu, J., Kwan, H., Wu, L., & Wu, W. (2010). Abusive supervision and subordinate supervisor‐directed deviance: The moderating role of traditional values and the mediating role of revenge cognitions. Journal of Occupational and Organizational Psychology, 83(4), 835–856. https://doi.org/10.1348/096317909X485216

Muri, K., Augusti, E., Bjørnholt, M., & Hafstad, G. (2022). Childhood experiences of companion animal abuse and its co-occurrence with domestic abuse: Evidence from a national youth survey in Norway. Journal of Interpersonal Violence, 37(23–24), NP22627–NP22646. https://doi.org/10.1177/08862605211072176

Pavlenko, T. (2023). Domestic violence in a cruel form of behavior with children: Some problematic aspects. Law and Innovative Society, 1(20), 74–80. https://doi.org/10.37772/2309-9275-2023-1(20)-6

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Sobre o Felipe

Felipe Pretel, USP

Psicólogo Clínico com foco em Saúde Mental baseada em Evidências

Psicólogo Clínico formado pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP e Economista formado pela Universidade de São Paulo – FEA-USP. Atua no tratamento de ansiedade, transtornos emocionais e dificuldades interpessoais, utilizando abordagens científicas para promover bem-estar psicológico. Com experiência acadêmica e profissional internacional, aplica neurociência e psicologia baseada em evidências para auxiliar no desenvolvimento emocional e no fortalecimento da saúde mental. Realiza atendimentos em português, inglês e espanhol.

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