Introdução: Por que o narcisismo é tão complexo?
O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) ocupa uma posição singular na psicologia clínica contemporânea devido à complexidade de seus sintomas — grandiosidade, necessidade constante de admiração e dificuldades empáticas — e à diversidade de perspectivas teóricas que buscam explicá-lo. Avanços recentes nas neurociências, na psicodinâmica moderna e nos modelos cognitivo-comportamentais ampliaram a compreensão do TPN para além de uma visão puramente categórica, aproximando-o de um espectro dimensional de funcionamento da personalidade. Essa multiplicidade de olhares refina os critérios diagnósticos e orienta abordagens terapêuticas diferenciadas, especialmente quando se considera a distinção emergente entre formas grandiosas e vulneráveis do narcisismo.
O que é o TPN de fato?
O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é uma condição psicológica complexa (neurobiológica e dimensional/descritiva), caracterizada por um padrão persistente de grandiosidade, necessidade constante de admiração e acentuada falta de empatia em relação aos outros. As estruturas teóricas que sustentam nossa compreensão do TPN incluem os modelos psicodinâmico, cognitivo-comportamental, interpessoal e neurobiológico. Cada estrutura contribui de forma única para a compreensão e os critérios diagnósticos do TPN.
Raízes emocionais e infância
Sob a perspectiva psicodinâmica, o TPN tem raízes nos estágios iniciais do desenvolvimento, notadamente vinculadas a déficits nos cuidados parentais e à internalização do valor próprio. Teoriza-se que indivíduos com TPN apresentam mecanismos de defesa primitivos — como a cisão (splitting) e a idealização — refletindo uma autoimagem instável e dificuldades na autorregulação (Schalkwijk et al., 2021; Caligor & Stern, 2020). A teoria das relações objetais de Kernberg propõe que tanto o narcisismo grandioso quanto o vulnerável emergem de patologias específicas do self, influenciadas por experiências relacionais precoces (Caligor & Stern, 2020). Essa ênfase está alinhada com pesquisas que indicam relação entre narcisismo e estilos parentais percebidos (Batıgün, 2020).
Pensamentos distorcidos e comportamento
Os modelos cognitivo-comportamentais concentram-se nos pensamentos e comportamentos desadaptativos associados ao TPN. Narcisistas frequentemente apresentam percepções distorcidas de si mesmos, inflando sua importância pessoal enquanto desvalorizam os outros, o que pode levar a interações interpessoais disfuncionais (Deng et al., 2021). Pesquisas também demonstram como distorções cognitivas podem fomentar comportamentos exploratórios e déficits de empatia (Giacomo et al., 2023). Isso se conecta a novas medidas que avaliam traços narcisistas em contextos sociais, refletindo uma evolução contínua na compreensão dos fundamentos cognitivos do narcisismo (Mulukom et al., 2020).
Como isso afeta as relações?
O modelo interpessoal destaca as dinâmicas relacionais inerentes ao TPN, enfatizando como esses indivíduos frequentemente manipulam situações sociais para manter uma autoimagem inflada e obter admiração. Pesquisas sugerem que a vulnerabilidade narcisista pode levar à ausência de conexões genuínas, já que esses indivíduos frequentemente utilizam estratégias agressivas ou de afastamento (Sulistiani et al., 2024). Isso aponta para a natureza dual do narcisismo, em que indivíduos podem oscilar entre formas grandiosas e vulneráveis (Green et al., 2024). Clínicos têm observado desafios diagnósticos decorrentes desses aspectos interpessoais, indicando que o gênero pode influenciar a percepção dos traços narcisistas (Green et al., 2023; Green et al., 2021).
O que o cérebro tem a ver com isso?
Pesquisas neurobiológicas começaram a revelar possíveis correlatos cerebrais do narcisismo, mostrando como disfunções em redes neurais responsáveis pela regulação emocional e cognição social podem sustentar o TPN. Por exemplo, déficits na rede de modo padrão (default mode network) — associada ao pensamento autorreferencial e à empatia — têm sido implicados na desregulação emocional observada em indivíduos com traços narcisistas (Giacomo et al., 2023). Além disso, achados recentes sugerem correlações entre estratégias de regulação emocional e estilos de apego, indicando que o apego inseguro — frequentemente enraizado em relacionamentos precoces — pode predispor indivíduos a traços narcisistas (Deng et al., 2021).
Grandioso x Vulnerável: os dois lados da moeda
As distinções entre narcisismo grandioso e vulnerável têm ganhado força nas pesquisas recentes.
- O narcisismo vulnerável é marcado por defensividade, insegurança e uma estrutura de autovalor* (sempre relacional) altamente sensível (Giacomo et al., 2023; Green et al., 2024).
O narcisismo grandioso é caracterizado por uma autoimportância explícita e baixa empatia.
Essa diferenciação é significativa, pois impacta diretamente as estratégias de intervenção clínica:
Narcisistas vulneráveis → foco no fortalecimento do autovalor* (sempre relacional) e na regulação emocional.
Narcisistas grandiosos → ênfase no desenvolvimento da empatia e das habilidades interpessoais (Crisp & Gabbard, 2020).
A literatura recente evidencia que a expressão do narcisismo pode variar entre os gêneros, dificultando tanto o diagnóstico quanto o tratamento (Green et al., 2023; Green et al., 2021).
Conclusão: por que estudar isso importa?
Desta forma, o Transtorno de Personalidade Narcisista continua sendo um transtorno multifacetado (epistemologia diagnóstica oficial – DSM-5-TR e CID-11), influenciado por diversas abordagens teóricas que continuam a evoluir com novos achados empíricos. Pesquisas contínuas sobre correlatos neurais, estilos de apego e regulação emocional refinarão ainda mais a compreensão e os critérios diagnósticos do TPN, especialmente à medida que as distinções entre formas grandiosa e vulnerável se tornarem mais claras.
🔎 Sobre o trabalho clínico de Felipe Pretel
Psicólogo pela UNIFESP, com formação clínica continuada pelo Instituto de Psicologia da USP e pela Clínica Singularis, Pretel atua a partir de uma abordagem psicodinâmica contemporânea, com foco em conflitos afetivos, estruturas de personalidade e simbolização das experiências.
Também formado em Economia pela FEA-USP, desenvolve uma escuta ampliada das dimensões estruturais da vida humana — como valor, trabalho, posição e contingência — integrando leitura sociocultural com técnica clínica refinada.
As entrevistas abaixo oferecem um ponto de entrada simbólico para compreender sua forma de pensar, trabalhar e interpretar os dilemas existenciais da nossa época — revelando tanto o estilo clínico quanto a densidade subjetiva do autor:
- 📄 Entrevista Internacional (IssueWire)
- 📄 Nova Entrevista Internacional (ISStories)
- 📲 Instagram Profissional: @ifpretel
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Clínica fundamentada, simbolização profunda e escuta atravessada por conflitos reais, relações vividas e posicionamentos subjetivos.
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Referências – padrão APA 7ª edição:
Batıgün, A. (2020). The assessment of the relationship between narcissism, perceived parental rearing styles, and defense mechanisms. Dusunen Adam: The Journal of Psychiatry and Neurological Sciences. https://doi.org/10.14744/dajpns.2020.00107
Caligor, E., & Stern, B. (2020). Diagnosis, classification, and assessment of narcissistic personality disorder within the framework of object relations theory. Journal of Personality Disorders, 34(Supplement), 104–121. https://doi.org/10.1521/pedi.2020.34.supp.104
Crisp, H., & Gabbard, G. (2020). Principles of psychodynamic treatment for patients with narcissistic personality disorder. Journal of Personality Disorders, 34(Supplement), 143–158. https://doi.org/10.1521/pedi.2020.34.supp.143
Deng, F., Ding, L., & Liao, C. (2021). An overview of narcissistic personality disorder. Advances in Social Science, Education and Humanities Research. https://doi.org/10.2991/assehr.k.211220.271
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Green, A., Day, N., Hart, C., Grenyer, B., & Bach, B. (2024). Gender bias in assessing narcissistic personality: Exploring the utility of the ICD‐11 dimensional model. British Journal of Clinical Psychology, 64(2), 248–264. https://doi.org/10.1111/bjc.12503
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Green, A., MacLean, R., & Charles, K. (2023). Clinician perception of pathological narcissism in females: A vignette-based study. Frontiers in Psychology, 14. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.1090746
Mulukom, V., Patterson, R., & Elk, M. (2020). Broadening your mind to include others: The relationship between serotonergic psychedelic experiences and maladaptive narcissism. Psychopharmacology, 237(9), 2725–2737. https://doi.org/10.1007/s00213-020-05568-y
Schalkwijk, F., Luyten, P., Ingenhoven, T., & Dekker, J. (2021). Narcissistic personality disorder: Are psychodynamic theories and the alternative DSM-5 model for personality disorders finally going to meet? Frontiers in Psychology, 12. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.676733
Sulistiani, H., Syarif, A., Muludi, K., & Warsito, W. (2024). Performance evaluation of feature selections on some ML approaches for diagnosing the narcissistic personality disorder. Bulletin of Electrical Engineering and Informatics, 13(2), 1383–1391. https://doi.org/10.11591/eei.v13i2.6717